CIENTISTAS BUSCAM GENES DE RESISTÊNCIA A ANTIBIÓTICOS NO BORRIFO DE BALEIAS

Pairando próximo à superfície da água, o drone mais parece uma mosquinha curiosa, zumbindo sobre a cabeça da baleia. Para os pesquisadores que assistem à cena da embarcação, é um momento de tensão e animação. Quem pilota a aeronave é o biólogo Fabio Fontes, do Instituto Baleia Jubarte. Ele usa as imagens da câmera para […]

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Pairando próximo à superfície da água, o drone mais parece uma mosquinha curiosa, zumbindo sobre a cabeça da baleia. Para os pesquisadores que assistem à cena da embarcação, é um momento de tensão e animação. Quem pilota a aeronave é o biólogo Fabio Fontes, do Instituto Baleia Jubarte. Ele usa as imagens da câmera para posicionar o drone diretamente sobre o orifício respiratório do animal, bem na “linha de tiro” do borrifo molhado que está por vir. Em condições normais, o contato com a água seria algo a ser evitado; mas aqui, não: quanto mais molhado o drone voltar para a embarcação, melhor.
“Segura, segura”, orienta a pesquisadora Samira Costa da Silva, doutoranda da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP. Logo abaixo do drone estão uma jubarte adulta fêmea e seu filhote, boiando tranquilamente nas águas de tom turquesa do Banco dos Abrolhos, no sul da Bahia. “Agora foi”, comemora ela, quando um borrifo exalado pela baleia mãe atinge a aeronave. Fontes, então, envia o comando para que o drone retorne à embarcação.
A máquina voadora pousa nas mãos da pesquisadora, que veste luvas e máscara de proteção azuis — não para se proteger da covid-19, mas para evitar a contaminação das amostras com bactérias da sua própria respiração. O drone tem quatro placas de plástico transparente acopladas a ele — duas em cima e duas embaixo —, e todas elas voltam salpicadas por gotículas de borrifo. É dentro dessas gotinhas, explica Samira, que está o seu objeto de pesquisa: amostras de bactérias e outros microrganismos que povoam naturalmente o trato respiratório das baleias. Em última instância, ela quer saber se essas bactérias possuem genes de resistência a antibióticos, o que seria um indicador preocupante de que a contaminação do ambiente por esses medicamentos está afetando a fauna marinha.

 

Dois anos atrás, um estudo pioneiro liderado pelo professor José Luiz Catão Dias e sua aluna de doutorado Ana Carolina Ewbank, também da FMVZ, encontrou diversos genes de resistência a antibióticos em bactérias do trato gastrointestinal de aves marinhas no arquipélago de Fernando de Noronha e no Atol da Rocas — ambientes insulares, localizados a centenas de quilômetros da costa do Rio Grande do Norte. Foi então que Samira teve a ideia de fazer a mesma investigação em baleias, só que com uma dificuldade a mais: ela também precisava trabalhar com animais vivos, na natureza, mas baleias de 45 toneladas não podem ser capturadas com redes e imobilizadas como se fez com aves marinhas e outras bichos menores. Então, como coletar as amostras?

Um outro trabalho coordenado por Catão Dias e a então doutoranda Kátia Groch, também publicado em 2020, detectou a presença de uma variante de Morbillivirus no borrifo de baleias jubarte em Abrolhos. (Morbillivirus é o vírus que causa sarampo em seres humanos. Nos cetáceos — grupo de mamíferos marinhos que inclui as baleias e os golfinhos — ele também é patogênico e altamente infeccioso, podendo causar surtos com altas taxas de mortalidade.) Nesse caso, as amostras de borrifo haviam sido coletadas anos antes, usando placas de acrílico presas a uma vara de quatro metros, o que exigia que os pesquisadores chegassem bem perto das baleias para coletar.

O estudo comprovou que os borrifos continham amostras do microbiota respiratória das baleias e que era possível extrair informações biológicas e genéticas dessas amostras. Exatamente o que Samira precisava para a sua nova pesquisa. Inspirada por trabalhos recentes que estavam sendo feitos em outros países, porém, ela optou por trabalhar com drones, para reduzir a necessidade (e os riscos) de ter que chegar tão perto das baleias. O projeto faz parte do doutorado de Samira, orientado pela professora Lara Keid, do Departamento de Medicina Veterinária da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP, em Pirassununga.

As hastes que prendem as placas de coleta ao drone foram projetadas sob medida e impressas em plástico superleve, usando impressoras 3D, para não sobrecarregar a aeronave. Além de bom piloto, Fontes tem a vantagem de ser biólogo, o que lhe permite prever com maior precisão o comportamento das baleias e o momento dos borrifos. Olheiros no alto da embarcação também ajudam a localizar e rastrear os animais. Mesmo quando as baleias estão submersas, é possível ter uma ideia da direção delas por meio das marcas que o movimento de suas caudas deixa na superfície da água — manchas de água lisa, que os pesquisadores chamam de “pista”.
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Foto: Herton Escobar/ USP Imagens

Diferentemente do que costuma aparecer nos desenhos animados, as baleias não borrifam água do mar pela cabeça! O borrifo, na verdade, vem da respiração das baleias: é o ar quente e úmido que elas expelem do pulmão quando sobem à superfície para respirar; e as gotículas de água são a umidade presente nessa respiração, que condensa imediatamente em contato com o ar mais frio do lado de fora — mesmo processo, por exemplo, pelo qual soltamos “fumaça” pela boca quando o tempo está frio.

“São amostras que valem ouro. É informação que vem de dentro do animal, do jeito que ele está na natureza”, comemora Samira. Muito mais fácil seria coletar amostras de tecido de baleias encalhadas, mas nesse caso haveria um viés muito grande nas análises, já que a maioria das baleias que encalham já está doente ou morta, às vezes em estado avançado de putrefação. Sendo assim, seria impossível concluir que as bactérias e vírus coletadas nesses animais fazem parte da microbiota de uma baleia saúdavel na natureza, ou não.
“O bicho morto não te dá uma visão clara da saúde da população”, explica Samira. Os genes de resistência a antibióticos são o alvo principal desta pesquisa, mas as portas que se abrem para fazer diferentes análises e investigar outras questões com base na coleta de borrifos são muito mais amplas. “A possibilidade de acessar o ar expirado desses animais é maravilhoso”, afirma Catão, que dirige o Laboratório de Patologia Comparada de Animais Silvestres e orientou o mestrado de Samira na FMVZ. Além de bactérias e vírus, o borrifo carrega células e fragmentos de células desprendidas do trato respiratório do animal, que também podem servir como fonte de material genético para análise. “Claro que não é nenhuma panaceia, mas a quantidade de informações que a gente pode obter de uma forma não invasiva é sensacional.” Fora isso, diz ele, a única maneira de obter dados biológicos de baleias vivas na natureza é por meio de tiros de balestra, em que os pesquisadores utilizam flechas com pontas adaptadas para coletar pequenas amostras de pele dos animais.
Em última instância, Samira espera que as informações obtidas dos borrifos possam ajudar no monitoramento da saúde das baleias — em escala populacional — e dos ecossistemas marinhos que elas habitam. O Banco dos Abrolhos é o principal refúgio de baleias jubartes do Atlântico Sul: milhares migram temporariamente da Antártida para lá todos os anos, entre julho e novembro, para parir, copular e amamentar seus filhotes nas águas calmas e quentinhas da região. Mas os números variam ano a ano, e os cientistas nem sempre sabem explicar porquê. Em 2021, houve um recorde de encalhes de baleias na costa brasileira, segundo o Instituto Baleia Jubarte. Será que doenças causadas por patógenos poderiam estar envolvidas? É uma questão que o monitoramento por borrifos, talvez, possa ajudar a responder. “É uma forma de pegar a ciência e aplicá-la diretamente em conservação”, pontua Samira.