Tramita no Senado a PEC 55/2023, que visa aumentar o gasto do governo federal com as Forças Armadas, atrelando o orçamento da Defesa ao PIB nacional em 2% dentro de alguns anos. Para especialistas do setor, esta pode ser a oportunidade do Brasil de recuperar sua indústria e sua liderança na América do Sul.
De acordo com a proposta, de autoria do senador Carlos Portinho (PL-RJ), os gastos federais com a Defesa Nacional deverão crescer em 0,1 ponto percentual a cada ano até atingir a taxa mínima de 2% do produto interno bruto (PIB). Desses valores, 35% das despesas discricionárias deverão se referir a projetos estratégicos da Defesa.
Quanto o Brasil gasta com as Forças Armadas?
Para João Gabriel Burmann da Costa, professor de relações internacionais da UniRitter e pesquisador associado do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), a matéria é um grande avanço para as Forças Armadas, uma vez que lida com as restrições orçamentárias da pasta, algo que vem servindo de impedimento para o setor nos últimos anos.
No entanto, para Jonathan de Assis, pesquisador pelo Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), há “dinâmicas e peculiaridades dos gastos militares no contexto brasileiro” que precisam ser analisadas mais profundamente.
O patamar orçamentário de 2% do PIB não é nenhuma novidade no cenário brasileiro. Esse número já estava presente na Estratégia Nacional de Defesa (END) de 2020. No texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55/2023, ele é justificado a partir do mesmo referencial de investimento acordado pelos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 2006.
Esse valor, explica Burmann da Costa, não tem nenhuma base científica, mas foi designado “a partir do que são as práticas e as políticas mais comuns de investimento em Defesa no resto do mundo”. O pesquisador ressalta, contudo, que até o início do conflito ucraniano os países da OTAN, especialmente os europeus, não cumpriam essa meta.
No entanto, alerta Assis, é preciso ter em mente que, nos últimos anos, 70% dos gastos da Defesa se deram com o pagamento de pessoal, militares da ativa, reserva, aposentadorias e pensões, enquanto os dispêndios relativos a investimentos representaram apenas 10%. “Antes de discutir os ‘2%’, é urgente abrir ao debate público os, em média, ‘70%’ referentes aos gastos com pessoal.”
Quanto o Brasil gastaria em defesa
Ainda assim, o texto da PEC 55/2023 determina que 35% desse novo montante orçamentário deve ser destinado a projetos estratégicos que “priorizarão a indústria nacional e contribuirão para a consolidação da Base Industrial de Defesa”, segundo o texto.
No entanto, aponta Costa, “os projetos estratégicos são muito amplos”, podendo variar desde a “aquisição e modernização de sistemas” ao aumento de tropas na Amazônia e “uma série de outras questões de caráter civil das Forças Armadas, não necessariamente de caráter militar”.
“Espero que o governo consiga fazer essa pressão e essa fiscalização, essa incidência para que o texto seja bem restrito, bem claro, na questão dos investimentos em tecnologia”, disse Costa.
Quais serão as prioridades das Forças Armadas?
Ainda que até agora não haja refinamento na proposta para que sejam detalhados os gastos das Forças Armadas, documentos estratégicos brasileiros — como o Política Nacional de Defesa (PND), Estratégia Nacional de Defesa (END) e Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) — servem como norte para que os analistas estimem qual será o foco de cada braço militar com os novos recursos.
O que o Exército brasileiro faz atualmente?
Para as forças terrestres brasileiras, em linha com a END, aponta Araújo de Assis, os pontos de destaque serão o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron) e o Projeto Guarani, de desenvolvimento de blindados. Além do Guarani, Costa destaca também o blindado Centauro e o lançador de foguete Astros.
Qual é o papel da Marinha do Brasil?
Dentro da Marinha, os recursos devem ser destinados à modernização do poder naval por meio do Programa Tamandaré, de construção de fragatas, e do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), inclusive o de propulsão nuclear, desenvolvido em conjunto com o Programa Nuclear da Marinha (PNM).
Qual é o poder da FAB?
No caso da Força Aérea Brasileira (FAB), destacam os analistas, o grande projeto é o FX-2, que visa modernizar a frota de caças brasileiros por meio da compra e do desenvolvimento de modelos F-39 Gripen, da sueca Saab.
O que é a Base Industrial de Defesa?
Um dos grandes pontos reforçados pela matéria do Senado é que o aumento do orçamento em Defesa vai fortalecer a Base Industrial de Defesa (BID), conjunto de indústrias que serve direta ou indiretamente às Forças Armadas.
Essa cadeia de empresas não só gera empregos e fomenta a economia nacional, como também pode aumentar o PIB por meio da exportação de produtos de altíssimo valor agregado, como é o caso do KC-390.
“Uma mudança orçamentária dessa natureza”, analisa Jonathan de Assis, “pode representar maiores oportunidades em ganhos econômicos, uma vez que o Estado, e particularmente as Forças Armadas, permanece como o principal cliente — em alguns casos, como único — dessas empresas”.
A BID, no entanto, não ganha somente a partir da atividade econômica, mas também graças à transferência de tecnologia, cláusula contratual comum em todas licitações brasileiras no momento de buscar um novo equipamento.
“Prioriza-se a aquisição de armamentos que envolvam a transferência de tecnologia. Essa é a postura prioritária na busca de incrementar a autonomia tecnológica e estratégica do país”, declarou Assis.
“É o caso, por exemplo, do Prosub, que foi […] firmado lá em 2009, no primeiro governo Lula, e que a França está nos auxiliando a desenvolver, passando a tecnologia para a produção do submarino de propulsão nuclear e dos submarinos convencionais”, lembrou Costa.
Contudo, Assis afirma que, na opinião dele, o objetivo final não deve ser sempre a transferência de tecnologia, uma vez que “reforça as condições da dependência estratégica”.
Qual é o país mais forte da América do Sul?
Outro ponto abordado pelos especialistas foi o retorno do protagonismo do Brasil na América do Sul. Para Costa, nos últimos seis anos o país deixou um vácuo, permitindo que sua hegemonia regional fosse contestada. Frente a essa “inação” do governo brasileiro, outros países buscaram assumir a liderança regional.
Ainda assim, o Brasil é o país com o maior poderio militar da América Latina, de acordo com o índice divulgado pelo site Global Firepower.
Para Jonathan de Assis, as duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas “pelo aumento no volume de transferências de armamentos realizadas pelos países sul-americanos, em especial Brasil, Chile e Venezuela .
A modernização de suas capacidades militares representa tanto uma busca de substituição de materiais obsoletos quanto um esforço de melhorar seu perfil político regional e internacionalmente.”
João Gabriel Burmann da Costa afirma que, no caso do Chile, o país conta com uma boa força de blindados, enquanto a Venezuela — graças à cooperação com a Rússia para a aquisição de caças Su-30 — possui uma boa Força Aérea.
Costa ainda destaca a Colômbia que, em sua opinião, é o país que tem “um melhor equilíbrio entre força terrestre, naval e aérea”.
Ainda assim, Costa afirma que as Forças Armadas brasileiras, embora tenham algumas desvantagens em termos qualitativos, ainda “são as maiores em termos de números na América do Sul”.
Gasto militar no Brasil: além do poderio bélico, há o político
Ao mesmo tempo que os gastos militares visam aumentar o poderio das Forças Armadas brasileiras, aumenta-se também sua influência política na região.
“A gente não consegue mais exercer essa liderança somente através da diplomacia e da economia e, eventualmente, tem que fazer manifestações um pouco mais enfáticas, como foi agora o caso da Venezuela”, explicou.
Em um mundo que se desenha cada vez mais a partir da multipolaridade, aponta Costa, o Brasil é visto como o grande líder da América do Sul, “inclusive com a anuência dos Estados Unidos”, destacou.
A questão agora, ressalta, é garantir que o país consiga se aproveitar dessa posição para “recuperar uma política de integração” regional. Caso contrário, afirma, ficaremos em uma posição contraditória em que “todo mundo nos vê como o líder da América do Sul, menos os nossos vizinhos”.