Joaquim José da Silva Xavier, o popular Tiradentes, morreu em 21 de abril de 1792 e de lá pra cá sua história é contada, recontada e muitas vezes alterada.
“Tiradentes foi apropriado pela história. Uma coisa é o personagem histórico, mas ele foi sendo progressivamente manipulado pela história”, defende o pesquisador João Furtado, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em entrevista ao Conversa Bem Viver desta segunda-feira (21).
Pela historiografia tradicional, Tiradentes foi um dos líderes da Inconfidência Mineira, movimento liderado por um grupo de intelectuais, padres e detentores de patentes militares de Vila Rica (hoje Ouro Preto) que começaram a pensar em uma revolta contra a coroa portuguesa, no final do século 18.
Furtado destaca que, desde a época do Império, a Inconfidência Mineira já era exaltada como um importante movimento pela independência do Brasil. Mas é no período republicano que Tiradentes, de fato, ganha o status de herói.
“O Tiradentes foi apresentado como um libertário, como um liberticida, quando a República quis se implantar e falou assim, ‘olha, pegar um Luís da Gama, pegar um poeta, como Castro Alves, é dar uma nota de radicalidade que nós talvez não desejássemos’”, defende o professor.
Na atualidade, não são raras as versões que contestam a figura de Tiradentes como herói nacional, exaltando como ele era um senhor de escravos, não pensava num movimento de independência do Brasil e, na verdade, nem era uma liderança, de fato, da Inconfidência Mineira.
“Na verdade, a verdade sobre Tiradentes não existe, ela está perdida no tempo, porque são camadas e mais camadas que vão se sobrepondo, assim como o manto de Penélope.”
O professor faz referência à mitologia grega que conta a história de Penélope, esposa de Ulisses. Quando ele partiu para a Guerra de Tróia, afastando-se por anos, Penélope passou a sofrer pressão para que se casasse novamente. Para driblar os pretendentes, ela prometeu que iria escolher o marido assim que seu manto nupcial estivesse pronto.
“E aí ela ficava tecendo durante o dia, de modo que todo mundo via ela bordando. E ao final do dia ela ia se recolher e aí desfazia durante a noite tudo aquilo que ela abordou durante o dia”, conta o professor sobre porque escolheu esta história para dar nome ao seu livro sobre Tiradentes, O Manto de Penélope.
“Por esse motivo eu escolhi esse título, por quê? Porque é o trabalho da memória, a memória faz e desfaz a sua narrativa o tempo todo, eu diria mesmo que a cada geração a memória refaz uma interpretação sobre a Inconfidência Mineira.”
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Afinal, quem foi Tiradentes?
João Furtado: Tiradentes era um homem do seu tempo. Era uma pessoa complexa, uma personalidade extremamente ambivalente. Ele é uma pessoa realmente muito interessante.
Acho que é por esse motivo que ele ocupou esse lugar tão importante no imaginário nacional, porque ao mesmo tempo que ele realmente expos os ideais de liberdade, ele era um proprietário de escravos, quer dizer, uma pessoa que tinha essas ambiguidades, que são as ambiguidades do tempo.
Era um homem inteligente, perspicaz, extremamente inteligente, já tentou se dizer que ele era quase iluminista, que ele era refinadíssimo. Não, a inteligência dele era muito prática.
Mas era um personagem muito importante nas Minas porque ele era aquilo que se diz: o popular, né? Tem até uma uma cronista antiga que escreveu uma crônica em que ela descreve o popular exaltado.
Ele era filho de um fazendeiro que não era um fazendeiro mediano, nem medíocre, ele era de fato uma pessoa com origens relativamente elitistas, fato que o fez chegar ao cargo de alferes da cavalaria, que, por mais que pareça um cargo secundário, era um cargo para pessoas de alguma condição social.
Por exemplo, era um cargo que nem todos acessavam. Negros, por exemplo, estavam fora dele.
Quando Tiradentes foi elevado ao status de herói nacional?
Na verdade, Tiradentes foi apropriado pela história. Uma coisa é o personagem histórico, que tem um pouco dessas características que eu acabei de descrever, mas ele foi sendo progressivamente, manipulado pela história.
Então, só para lembrar, essa ideia de que a Inconfidência Mineira é uma criação da República é uma ideia fantasiosa.
Na verdade, já no Império, o movimento era celebrado como um proto movimento de independência, como sendo aquele que lançou as principais bases da futura independência do país.
As pessoas celebram certos valores, valorizam algumas coisas e transformam isso no nacionalismo, né? Na verdade, a Inconfidência Mineira tinha um embrião, sim, de algum nacionalismo, mas era um movimento extremamente, digamos assim, anti-absolutista.
Eles iriam contestar os excessos referentes aos impostos, referentes à forma de dominação portuguesa, então muitos se insurgiram contra isso. Mas não ficou estabelecido nas reuniões que fizeram se de fato seria criada uma nova República com as características que depois a historiografia imprimiu.
A Inconfidência Mineira não foi um movimento que tivesse essa radicalidade republicana que se lhe atribui hoje. Na verdade, isso é uma adulteração da história, porque na prática o que a história mostra é que a Inconfidência Mineira era um movimento que tinha uma forte carga de restauração de privilégios.
Ela de fato queria manter privilégios que o atual governador da época queria extinguir. E eles queriam, de alguma maneira, retomar o que eles consideravam melhor.
Pra dizer a verdade, isso é uma coisa que a memória nacional nem sempre gosta de ouvir. A memória, essa memória nacionalista. O movimento não foi tão duramente reprimido, na verdade, ele abortou.
Quando ele foi reprimido, ele já não existia mais, ele já não tinha efetividade, porque havia um forte descenso entre os seus principais organizadores.
E por que você deu nome ao seu livro de O Manto de Penélope?
Quando eu lancei o livro, eu já recebi uma crítica de uma pessoa que falou assim, “Pô, João, você tinha que ter colocado o título do seu livro ‘A verdade sobre Tiradentes’, que ia vender muito mais, né?”
Na verdade, a verdade sobre Tiradentes não existe, ela está perdida no tempo, porque são camadas e mais camadas que vão se sobrepondo, assim como o manto de Penélope.
O que conta a mitologia? Penélope era a esposa, que se tinha como viúva porque Ulisses saiu para a Guerra de Tróia e ele demorou muito tempo para voltar.
E aí diziam pra ela, “Penélope, você tem que desposar um novo marido porque senão o reino vai ficar a descoberto. Ninguém respeita uma mulher sozinha”.
Então ela recebeu inúmeras propostas de casamento e para essas propostas ela sempre dizia “não, eu vou me casar, mas vou bordar um manto nupcial para que eu possa me apresentar diante dos sacerdotes com este manto”.
E aí ela ficava tecendo durante o dia, de modo que todo mundo via ela bordando. E ao final do dia ela ia se recolher e aí desfazia durante a noite tudo aquilo que ela abordou durante o dia.
Por esse motivo eu escolhi esse título, por quê? Porque é o trabalho da memória, a memória faz e desfaz a sua narrativa o tempo todo, eu diria mesmo que a cada geração a memória refaz uma interpretação sobre a Inconfidência Mineira.
Brasil de Fato