O governo federal tem a responsabilidade prevista em lei de elaborar e implemenar política pública de âmbito nacional de controle da criminalidae, articulando esforços de Estados e Municípios
por LUIS FLAVIO SAPORI
Consolidada a vitória de Lula, os trabalhos se concentram agora no Gabinete de Transição Governamental. O momento envolve o conhecimento mais detalhado da situação do governo federal em todas as áreas de atuação. Gabinetes de transição não têm caráter deliberativo, limitando-se a diagnósticos e apontamentos das primeiras medidas a serem tomadas pelo governo eleito. Sob tal perspectiva, as equipes técnicas constituídas sob a coordenação do vice-presidente Geraldo Alckimin atendem às expectativas no sentido de elaborarem relatórios consistentes de 31 temas estabelecidos. Isso não significa que o governo a ser empossado terá número correspondente de ministérios. Contudo, trata-se de sinalização preliminar da conformação do primeiro escalão que está por vir.
No que diz respeito à segurança pública, foi constituído grupo técnico denominado Justiça e Segurança Pública. Suscita inquietação o fato de o Gabinete de Transição aglutinar ambos os temas no mesmo grupo técnico. Os demais grupos estão claramente singularizados e especializados, destacando-se Cidades, Igualdade Racial, Pesca, Povos Originários, Inteligência Estratégica, entre outros. Houve, inclusive, a preocupação de separar o grupo temático Economia do grupo temático Planejamento, Orçamento e Gestão, corroborando intenção já manifesta do presidente eleito de diminuir a concentração de atribuições do ministério da Economia vigente.
O mesmo não aconteceu, entretanto, com a segurança pública. A primeira sinalização do Gabinete de Transição aponta para a provável não criação do respectivo ministério no futuro governo federal, contrariando promessa da campanha presidencial. Trata-se de mera conjectura, não há dúvida. Mas nos ensina a sabedoria popular que “onde há fumaça, há fogo”. Tudo leva a crer que há setores próximos ao Lula que não estão convencidos da necessidade de criação do ministério da Segurança Pública.
A responsabilidade pelo controle da criminalidade, conforme a Constituição Federal, está distribuída pelos entes federados, concentrando a maior parte do ônus nos executivos estaduais. A União tem atribuições não negligenciáveis, comandando duas forças policiais, a PF e a PRF, como também os presídios federais. Mas não para por aí. A Lei nº 13.675, de 11 de Junho de 2018, que criou o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), estabelece que compete à União estabelecer a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer suas respectivas políticas, observadas as diretrizes da política nacional. Em outras palavras, o governo federal não deve se limitar a comandar duas polícias e administrar alguns presídios próprios. Tem a responsabilidade prevista em lei de elaborar e implementar política pública de âmbito nacional de controle da criminalidade, articulando os esforços de estados e municípios. Considerando a relevância e complexidade dessa tarefa, faz-se necessária a criação do ministério da Segurança Pública.
A simples implantação de estrutura administrativa e institucional não é garantia de efetividade de uma política pública. É preciso antes de tudo articular fontes de financiamento a diagnósticos consistentes da realidade que, por sua vez, devem fundamentar o planejamento de ações concretas para enfrentar os problemas detectados e gestão competente dos planos de ação. Porém, a institucionalidade que tem prevalecido no ministério da Justiça nas últimas décadas constitui aspecto dificultador da viabilização de política nacional de segurança pública com resultados concretos na redução da criminalidade. A SENASP, incrustada desde sempre na estrutura desse ministério, consolidou-se com o tempo como segmento técnico e administrativo referencial dos planos estratégicos do governo federal para o setor, o que se comprovou insuficiente. Divide poder e compete por recursos escassos com outros órgãos, tais como a Secretaria Nacional de Justiça e a Secretaria Nacional do Consumidor, sem esquecer as entidades vinculadas como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). O resultado desse modelo de ministério na prática tem sido a posição coadjuvante da segurança pública no âmbito federal. Não é casual que os diversos ministros da Justiça que se sucederam nas últimas décadas não se notabilizaram por eventual protagonismo na coordenação de grande esforço nacional no enfrentamento da criminalidade. A única exceção foi Raul Jungmann em 2018 , no governo Temer, ano da curta existência do ministério da Segurança Pública.
O presidente Lula precisa compreender que nos próximos quatro anos sua missão não se restringe a debelar a miséria e a fome que assolam o país. Reduzir a incidência dos crimes violentos é tarefa inadiável. Não podemos naturalizar a ocorrência de 40 mil assassinatos, de 1500 feminicídios e de dois milhões de roubos no país todos os anos. Como se não bastasse, diversas manifestações do crime organizado, com destaque para facções do tráfico de drogas e para as milícias, estão se fortalecendo a olhos vistos. Não se pode ignorar também que o desmatamento ilegal da Amazônia, além da mineração irregular em terras indígenas, têm clara participação de organizações criminosas que lucram com tais mercados ilícitos. A situação da segurança pública permanece muito grave. Alguns governos estaduais estão conseguindo viabilizar políticas locais de redução da violência com resultados alvissareiros, porém é preciso mais, muito mais.
A criação do ministério da Segurança Pública não deve ser interpretada como condição suficiente para a solução milagrosa para todos os problemas detectados. Contudo, trata-se de condição necessária para a indução de um processo social e institucional de reversão dos inomináveis indicadores de criminalidade violenta que atormentam a sociedade brasileira, em especial os mais pobres.
LUIS FLAVIO SAPORI
Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professor do curso de Ciências Sociais da PUC Minas e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública
(Artigo publicado originalmente no site Fonte Segura)